Em 1923, no Rio de Janeiro, Maria Beatriz Roquette Pinto foi a primeira mulher a ter a profissão de radialista.Maria Beatriz, ainda menina, estreou na rádio logo nas primeiras transmissões. Segundo pesquisas ela foi, diretora de programação, produtora, exerceu outros cargos e funções para além do entretenimento.
Atuou na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro – PRA-2, fundada por seu pai, o Professor Edgard Roquette Pinto, em 1923. A moça realmente possuía talento para falar ao microfone pioneiro e acompanhava o pai em todas as suas demandas em prol do desenvolvimento daquele que viria a ser o maior veiculo de comunicação de todos os tempos no Brasil de então. A voz feminina de Beatriz Roquette Pinto era uma curiosidade a mais, destoando do maior número de vozes masculinas, então.
Reproduzo uma entrevista realizada com a Beatriz Roquette Pinto em maio 1990.
ENTREVISTA COM BEATRIZ ROQUETTE-PINTO BOJUNGA
Transcrição: Gisele Pimentel. Site: “A Minha Rádio”
– D. Beatriz Roquette-Pinto Bojunga, a senhora feche os olhos e pense no Roquette-Pinto: qual a primeira coisa que lhe vem à cabeça? Beatriz Roquette-Pinto Bojunga – O grande brasileiro que ele foi, continuar sendo com tudo o que deixou aí. E não preciso fechar os olhos, não; eu estou sempre com ele na cabeça.
– Num artigo da Julieta Drummond, a filha do Carlos Drummond, eu li uma declaração em que a senhora diz que Roquette lhe inculcou três conceitos: respeito à liberdade alheia, compreensão humana e valorização da amizade. Gostaria que a senhora falasse sobre isso. B. – Bom, a compreensão humana que ele tinha era uma coisa fantástica, porque ele sabia tirar das pessoas inclusive o que as pessoas tinham de melhor. Por exemplo, quando ele fundou o cinema educativo, ele foi, estava com aquilo já estudando há muito tempo com Jonatas Serrano, com o “Grupo de Brasileiros”, mas ele era director do Museu Nacional e, um dia, aparece u rapaz vendendo aparelhos domésticos e, sabe quem era? Humberto Mauro. E ele começou a descobrir o Humberto Mauro dentro do Humberto Mauro. Então, foi a primeira pessoa no Rio de Janeiro, ele tinha vindo para fazer uns filmes, estava mal de vida porque naquele tempo já era difícil o cinema, e daí ele pegou o Mauro e nunca mais deixou, e ele dizia: “O Mauro é uma das pessoas mais inteligentes e cultas que eu conheço”. Quer dizer, ele tirava das pessoas, ele entendia as pessoas porque ele procurava dentro delas o que tinha de melhor, ele tinha essa arte. Eu sou suspeita para falar dele, não é? O outro é…
– Respeito à liberdade… B. – Respeito à liberdade alheia. Bom, isso é uma coisa fantástica. Ele achava, como ele tem vários pensamentos dele, que ele diz sempre que nada no mundo, o pensamento tem que ser livre como a respiração, você não pode fazer nada de grande no mundo sem amor e sem liberdade. Isso é uma coisa primordial. E os amigos, então, essa plêiade de grandes amigos que me fazem muita falta: é o Carlos Drummond, é o Anísio Teixeira, é o Lourenço Filho, é o Venâncio Filho, era o Tude de Souza, era o Murilo Miranda na parte da Rádio, e tantos, como o Mateus Zulab, é uma plêiade. Se eu começar a falar eu vou acabar chorando… de saudade.
– Tinha o Garrenaud, não é? B. – Ah, o Garrenaud, também, muito amigo dele, e o grande amigo Capanema, também. O Capanema foi uma coisa impressionante porque nunca, aliás, no tempo, engraçado, no tempo de uma ditadura, isso é uma coisa que precisava até ser dita, meu pai nunca foi político, não dava para a Política, ele era uma pessoa que vivia da Educação, vivia da Antropologia, vivia da Fisiologia. Ele era um homem eclético, não é, ele era um homem…. Muita gente até conhecia pouco e dizia, no começo da vida, dizia: “Ah, mas ele não pára em coisa alguma, ele faz tudo ao mesmo tempo”. Absolutamente! Ele começou a vida como médico. Ele se formou em Medicina porque ele foi criado pelo avô na Fazenda Bela Fama, uma fazenda linda perto de Juiz de Fora, e ele até estava pensando em entrar para a Marinha, uma coisa de rapaz mineiro, 17 anos, e ele veio buscar o Chico de Castro, pai do Aloísio de Castro, que era professor, para tratar do avô dele, que foi quem o criou, o velho João “Roquêtte” (como dizem em Minas) Carneiro de Mendonça, porque a nossa família é Carneiro de Mendonça. O “Roquette-Pinto” só tem ele, ele fez o “Roquette-Pinto”, naturalmente meu irmão, agora os sobrinhos já, mas era… Ele tirou porque o avô era conhecido por “Dr. Roquette”, e ele era o “Dr. Edgard”, era estudante de Medicina. Quando ele se formou, ele sempre contava isso, a minha bisavó, a avó dele que o criou, chamou todos os escravos (naquele tempo havia escravos na fazenda), pôs todos alinhados e disse: “De agora em diante não existe mais Dr. Edgard aqui, existe Dr. Roquette. É o nome do avô”. Ele então, em homenagem ao avô, tirou o Carneiro de Mendonça e ficou Roquette-Pinto. E o interessante é que ele ficou tão conhecido por “Dr. Roquette” que, até no momento em que ele morreu, os repórteres perguntavam: “Como é o nome dele?” E eu me lembro que eu gritei: “Edgard!”. E ninguém sabia, era “Dr. Roquette”, “Dr. Roquette”. Ficou o nome dele. Ele tinha paixão por esse avô, não é, quem o criou. E daí ele foi, casou-se com a minha mãe. O meu avô, pai da minha mãe, era médico, parteiro, e ele foi trabalhar com meu avô. Começo de vida, trabalhou na Santa Casa (que chamava na sala do banco) ele sempre contava isso, não é do meu tempo, mas ele contava.
– Ele casou com a sua mãe em que ano? B. – Bom, aí eu posso fazer o cálculo pelo meu irmão. É duro ter que declarar isso, mas eu declaro, fagueira, eu não me importo, não. Nasci em 1911, e… quer dizer, uns quatro anos antes, faço cálculo, mais ou menos, não é? Ele deve ter casado em 06, 07, por aí. Mas depois ele foi trabalhar, fundou o Laboratório , foi fantástico! A vida dele é uma coisa, é uma epopéia! Ele foi trabalhar como laboratorista, e fazia sucesso, ganhava dinheiro, quer dizer, sucesso do ponto de vista do dinheiro, que é uma coisa que a nossa família, inclusive aprendemos com ele, nunca se interessou muito. Aí largou, aí ele fez um concurso para Professor do Museu Nacional, para Antropologia. Daí ele ficou com aquela paixão pela Antropologia. E, nesse intervalo, ele conheceu Rondon. E aí, apaixonado pelo estudo da Antropologia, o Rondon, em 1911, parece-me que em 11, foi o ano em que eu nasci, ele foi para Londres, no Congresso das Raças, representando o Brasil. Ele tinha vinte e sete anos. Eu fui com seis meses. Tinha vinte e sete anos, representando o Brasil no Congresso das Raças em Londres. Depois ele voltou, em 1912 ele foi com o Rondon para Mato Grosso, estudar os índios em Ambiquaras e Boros, na Serra do Norte. E, na volta, ele fez uma sala de exposições toda “Roquette-Pinto”, toda com material. Daí é que ele trouxe os fonogramas com as músicas “Nozanina Aurecuá Couaá Casaetê”, as dos índios Bororos, da Serra do Norte, em Ambiquaras, que o Villa-Lobos aproveitou para orquestrar, não é? E, depois dessa parte, ele foi Director do Museu Nacional. Aí, ele ficou muito tempo no Museu Nacional. Ele estudou antropologicamente, profundamente, o Homem brasileiro. E ele tem uma comparação muito interessante: ele chegou à conclusão que você não pode dizer que as raças têm “uma raça melhor do que a outra”. Ele apresenta a raça humana como “espectro solar”, não sei se isso está no livro dele. As raças têm as mesmas coisas que o espectro solar; você não pode pedir a uma que dê calor, quando ela dá luz. À que dá luz, você não pode pedir calor. É assim que ele compara as raças. Cada uma tem as suas qualidades, a que dá calor não pode dar luz. Em 1916 ele fez um curso para Professor da Escola Normal, naquele tempo Escola Normal, agora Instituto de Educação.
– Professor de quê? B. – Professor de História Natural. E ele escreveu até um livro lindo, que é “História Natural dos Pequeninos”, para as crianças, que até no outro dia eu li no artigo de Drummond, ele falou sobre esse livro. Uma História Natural, para os pequenos, para as crianças.
– Paraguai… B. – Bom, aí ele, como tinha trabalhado com os dois irmãos, Álvaro e Miguel Osório, grandes amigos dele, porque eu considero como tios. E com os dois ele trabalhou, fez uma experiência de Fisiologia e se encantou, e tudo aquilo que o encantava ele estudava profundamente, e acabava um professor na matéria. Então, ele foi mandado pelo Governo brasileiro para ser criador da Cadeira de Fisiologia na Universidade do Paraguai, porque não havia ainda essa Cátedra, ele que fundou essa Cátedra. Tanto que, muitos anos depois, ele ainda recebia, ele me telefonava: “Minha filha, você quer receber o Ministro da Educação do Paraguai, que foi meu aluno ?” (risos) Muitas vezes eu recebi vários Ministros que foram alunos dele nessa ocasião. Ele foi Professor de lá e tem uma… O Paraguai tinha uma paixão, o Roquette-Pinto lá era qualquer coisa!
– 22: B. – Ah, é a Rádio! 1922 ele na… Os grandes festejos, se trata do Brasil naquela coisa toda, e eu estava lhe contando, que até isso Amaral Peixoto contou no, no Centenário de papai, que ele era “mignonzinho” e que estava com o pai, e que ouviu um caixote assim, numa parede, de onde saía música, e umas vozes dizendo uns versos, de vez em quando. Se eu não me engano, um dos versos era do Luiz Alberto Torres, que dizia “…lá na Praia Vermelha”, e que ele perguntou o que era aquilo, e que o pai dele disse: “Ah, isso são as experiências que um grande brasileiro, um sábio, Roquette-Pinto, está fazendo!” O primeiro rádio. E engraçado que, três anos depois do rádio ter aparecido nos Estados Unidos. E quem deu o nome a ele de “Pai do Rádio do Brasil” não foi o Brasil, não; foi lá, dos Estados Unidos. Quando ele chegou a primeira vez lá, depois de ter instalado o Rádio aqui, veio nos jornais: “Chegou aqui o ‘Pai do Rádio Brasileiro’ “. Ele sempre dizia isso: “Eles lá é que me deram o nome, Pai do Rádio”. Aí, em 1923, a paixão dele começou, então porque ele via, ele dizia mesmo “Cada vez que eu ouvia aquelas ondas sonoras do telégrafo, eu dizia, ‘que força, que poder tem para a educação da nossa gente!’ Porque o nosso povo, é um Brasil imenso. Onde entra livro? Não sabem ler! Agora, entrando pelos ouvidos, a Educação vai entrando”. E eu até queria lhe contar, não sei se eu vou me estender muito, o meu filho, Cláudio, ele tinha uns sete anos, mais ou menos, seis anos, estava fazendo um dever de colégio, e me perguntou: “Mamãe, qual é a diferença entre Educação e Instrução?” O senhor sabe, eu sei, todos nós sabemos. Mas dizer em cinco minutos a uma senhora, uma moça que estava se vestindo para um “cocktail” numa Embaixada. Eu disse: “Ah, vou tocar para papai.” E o meu marido dizia “Você pensa que seu pai sabe tudo?”, e eu digo “Não, mas é que com ele eu não fico sem resposta.” O importante era a resposta. Porque ele ia, às vezes ele dizia: “Procura aí no dicionário, vou procurar aqui no Veftel, você procura no…” Eu não procurava, não é? Daqui há pouco ele tocava (ele me chamava de “Tizinha”): “Tizinha, achou?” E eu dizia “Não, papai, não achei.” “Preguiçosa! Na página tal está assim, assim, assim…” E ele dava a resposta. Então nesse dia ele me disse: “É muito fácil, minha filha: você, quando obriga o seu filho, Cláudio, a lavar os dentes todos os dias, você está educando. Quando você explica que, se não lavar o dente, vem a cárie, a infecção, a moléstia, você está instruindo. Então, educar é criar hábitos de significação social. No nosso país há muita gente instruída, que sabe que tem que lavar e não lava, não está habituado.” Nesse dia, eu fui para a Embaixada do Chile; um grande professor de Tisiologia, desses especialistas do pulmão, do físico, era homenagem a ele lá no Chile, na Embaixada do Chile, e eu vejo ele comendo com a colher que ele estava pondo na boca, e diz: “Señora, este es delicioso!” E, com a mesma colher que ele pôs na boca, ele pôs no prato. Eu disse: “instruidíssimo, um dos maiores professores, mas não é educado”. Eu sou educada, nunca faria uma coisa dessas. Ele sabe que não podia fazer, mas esqueceu! Aí, ele começou então a trabalhar, e tenho até uns casos interessantes, que ele fazia aquelas experiências. Eu o vi, muitas vezes, com radiozinho de galena, ele fez para mim, eu digo lá de minha casa, eu via o Tito Skipa cantar, eu punha aqueles fones, ficava procurando ali até ouvir. Daí ele, então, chamou um grupo de brasileiros, e ele foi procurar na Academia de Ciências o Dr. Morize. Por isso é que eu digo, o nosso Rádio começou muito alto, ele não pode se… desculpe o termo, se prostituir, não pode! Ele começou muito alto! E daí ele juntou esse grupo de brasileiros e ele contagiava as pessoas. Então, todos entraram para sócios, e eu me lembro que todos faziam tudo de graça, porque não tinha dinheiro. Então, as irradiações, por exemplo, eu fiquei contando o quarto de hora infantil, eu dirigia a parte artística, o Sérgio Vasconcelos ia lá falar de música, o Mesquita era o secretário, toda semana tinha a Confederação Brasileira de Radiodifusão, sabe o que era? Na Rua da Carioca, 45, onde a Rádio funcionava, uma mesa enorme, papai sempre andava com aquele avental de professor, não é, de médico, sempre usou, aquele branco. Ele chegava e dizia: “Ô Mesquita, avisou todas as Rádios? Todos?” E o Mesquita: “Avisei, Dr. Roquette.” O único que ia de vez em quando era o Elber Dias, da Rádio Clube. Mais ninguém aparecia. Então ele chegava, sentava na cabeceira, ficava ali quinze minutos esperando, ninguém aparecia, daí encerrava a sessão. Aquilo era para ver os problemas do Rádio no Brasil!
– Por que que o Rádio começou muito alto? B. – Começou na Academia de Ciência! Não pode ser, não pode ser lugar melhor para um país começar! Eu acho que foi o único país no mundo em que esse Rádio começou tão alto, na Academia de Ciência! Alto, que eu digo, na parte cultural. Bem entendido, não é? Porque, a parte financeira foi sempre muito alijada, pode-se dizer pelo Roquette. E eu, até, estava lhe contando isso. É que, quando acabavam as irradiações, que aliás, eu não sei, é uma pena que não tenham continuado, a Rádio Ministério da Educação e Cultura, os directores mudavam, eu sempre dizia “Por que não acabam…”, ele sempre acabava assim: “Acabaram de ouvir a PRA2, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que acabou de irradiar, pela cultura dos que vivem em nossa terra, pelo progresso do Brasil.” Tocava o Hino Nacional e acabava. Vamos dizer que tirem o Hino Nacional; mas a frase, ele não botou para os brasileiros, não, olha como isso é extenso: “Pela cultura dos que vivem em nossa terra, pelo progresso do Brasil”. E ele, antes disso, ele dizia: “Cooperam para o fundo da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro Irineu Santos e Cia., Rua Chile, 23, fulano de tal, Rua da Carioca…” Aí entrava um anúncio daqueles que mandavam válvula para ele de presente, coisas que ele não pagava, não é? Então, a Rádio começou por isso. Era um ideal. Começou e acabou como um ideal, quer dizer, acabou não, porque ela não acabou. A Rádio Ministério da Educação continua tendo o mesmo espírito da Rádio Sociedade. Tem que continuar! Se não continua, ela tem que continuar! Agora, essa Rádio, eu queria muito… Eu posso falar agora sobre a doação?
– Pode! Só que a gente podia falar um pouquinho mais dessa Rádio Sociedade, em relação… B. – Pois não.
– A senhora lembra da programação da Rádio? B. – Lembro. Eu fui Directora muitos anos, da Rádio.
– O que era? Como é que era? B. – Primeiro, se ganhava cachê, não é? Eram uns envelopinhos que o Mesquita, o Seu Mesquita, todo mundo tinha medo do Mesquita, menos eu, porque ele me tratava com muito carinho, mas era o cachê que se dava, a gente contratava. Por exemplo, tinha um programa da Elisinha Coelho, cantando “No Rancho Fundo”, aquela que canta agora, numa novela, tinha o Francisco Alves. Todos esses grandes cantores, até pouco tempo. Agora, não. Até pouco tempo, vocês tinham lá na Rádio Ministério da Educação, não sei se ainda têm, uma galeria de retratos (eu não sei onde estão esses retratos). Quando pintaram, tiraram os retratos. Em nome de todos os cantores, porque é preciso que se diga que, por exemplo, a primeira novela que houve de Rádio foi lá, na Rádio Sociedade. Chamava-se “A lenda do lago”. O Sérgio Vasconcelos vai se lembrar. Era dirigida pelo Gran Muri. Foi lá que começou. As óperas com o Sérgio, foi o papai que começou. Você sabe como era feito o jornal, o Sérgio Vasconcelos não contou, não? Que ele fazia da casa dele? Riscava e fazia. Ah, todos os grandes cantores que vinham, passavam na Rádio Sociedade, todos. Orlando Silva, Elisinha Coelho, a Marília Batista, a Aracy de Almeida, todos cantaram na Rádio, mas ninguém mais fala, falam só em Rádio Nacional. Você sabe que isso me dói? Porque a Rádio, para mim, a PRA2 é gente. Eu não ouço falar da Rádio. Mas a Rádio, pra mim, eu dizia a meu marido, é como se, se cortasse assim, cortaria um pedaço dela. Eu tenho que entrar na doação, sem querer eu vou entrar (risos).
– Então a senhora, por favor, explique o que levou a Rádio a ser doada. B. – Foi o seguinte: a Rádio Sociedade, quando foi entregue ao Governo, de volta, foi dada ao Governo, ela estava com suas contas em dia, tudo pago, não devia a ninguém, estava funcionando maravilhosamente bem. Mas, o Dr. Roquette-Pinto não deixava, por exemplo, fazer anúncio da Casa Mathias, anúncio de bebida, então ela tinha tantos kilowatts, ela teria naquele momento… As outras todas estavam entrando, aumentando; ninguém mais ouvia a Rádio, porque a Rádio ia ficar com um prefixo, como ele dizia: “PRA2 é o prefixo maior da América do Sul, é o primeiro e maior”. Tanto é, que está aqui dito pelo João Calmon, a quantidade de Rádios que deu – eu quero depois dizer, porque isso é muito interessante – o prefixo da Rádio, PRA2. Só um minutinho, posso falar uma coisa?
– Fique à vontade! B. – Só aqui um pouquinho, quer ver? O prefixo da PRA2, quando foi doado ao Governo, esse prefixo deu, exactamente: a Rádio Sociedade, quer dizer, está no ar até hoje, transformou-se, em 1936, na Rádio Ministério da Educação e Cultura. A primeira emissora educativa do país, núcleo de onde se originaram 19 emissoras de rádio, e as 20 emissoras de televisão, hoje vinculadas à programação educativa do MEC. Somadas às emissoras em implantação pode-se dizer que Roquette-Pinto criou a matriz de nada menos que 46 emissoras dedicadas à formação do cidadão brasileiro, eu acho isso muito importante. Agora, ela foi, eu digo doada, porque os canais que muita gente diz: “Ah, mas os canais são do Governo, ele não tinha que doar uma coisa que não era dele, foi cedido…” Vai perguntar ao Roberto Marinho ou ao Bloch se eles vão reverter os canais. Então, naquele momento, foi doado o seguinte: ele viu que não poderia, que ele teria que aumentar a Rádio para poder competir com as outras. E, para aumentar, ele não tinha o dinheiro necessário. Não quis fazer anúncio; se ele quisesse fazer anúncio, faria como outra qualquer, aí estaria como outras, como a Tupi, como a Nacional, como outras, e ele não queria. Eu me lembro como se fosse hoje, ele me chamou, a mim e meu irmão, nós ficamos de cada lado assim e ele sentado, eu de um lado, meu irmão do outro. Ele disse “Olha, eu chamei vocês dois porque eu sou um homem pobre. Eu só tenho de fortuna hoje, realmente fortuna, este prefixo desta Rádio. Esta Rádio, que é uma fortuna. Que só o canal (que o senhor sabe como é o canal, não é, só o canal da Rádio é uma coisa imensa, está dando a emissora até agora), mas o meu ideal é que esta Rádio nunca se transformasse. Ela foi fundada para educação do povo dela, e eu queria que ela continuasse para educação do nosso povo, da nossa gente.” Eu não deixei meu irmão levantar. Eu me levantei e disse “Papai, é seu ideal?” Ele disse “É, minha filha.” Eu digo “Então faça. É tão raro um homem conseguir realizar seu ideal na vida! Um ideal tão bonito. Papai, faça!” Dei um beijo nele, um só não, mais. Mas foi frio, sem emoção, sem nada. No dia 7 de setembro de 1936, não, antes disso, ele mandou uma carta, essa carta que nos salvou (risos), eu digo sempre, que ele mandou uma carta ao Capanema, perguntando se o Ministério da Educação se interessava pelos canais. E a doação toda tinha móveis, tinha tudo! A Rádio estava montada! Inclusive, seis funcionários desde a fundação. Se o Ministério da Educação se interessava pela Rádio. O Dr. Capanema mandou uma carta dizendo que “O Presidente Getúlio Vargas mandava agradecer muito e que aceitava, em nome do Governo, a Rádio”. Papai mandou outra carta, a nossa salvadora: “Vossa Excelência não me entendeu (isso é bem de Roquette). Vossa Excelência não me entendeu. Eu não estou doando esta Rádio ao Governo do Brasil. Estou doando à educação do meu povo, da minha gente.” Então ela ficou vinculada à Educação. Esta Rádio é vinculada à Educação! Bom, o Capanema aceitou, no dia 7 de setembro de 1936, o Capanema foi… Quem pôs os selos nos móveis fui eu com o Drummond e o Garrenaud (mas outro Drummond), eles eram Oficiais de Gabinete do Capanema. Eu me lembro, eu e o Drummond botando selos, lá, por isso ele sabia da história toda da Rádio. E botando os selos nos móveis, nas máquinas, e nesse dia o meu pai fez um discurso e acabou assim: “Entrego esta Rádio, com a mesma emoção com que se casa uma filha.” E veio chorar comigo num corredorzinho que tinha na Rua da Carioca. Bom, vê se eu posso ficar calada! Vê se eu posso ficar calada numa hora dessas! Assisto a isso tudo, está certo, muito bem, papai morre em 54. Não sei qual foi o ano em que eu fiz o Mandato de Segurança, não me lembro, dois anos depois que ele morreu, ou três anos. Eu fiquei sabendo que há uma Lei, talvez por engano, a pessoa que fez até era amiga nossa, um deputado e tal, que não vale à pena dizer o nome, eu acho que eu esqueci, até. E a Rádio passaria para o Senado e a Câmara. Eu fiquei louca! Mas eu fiquei num estado tal, que o meu filho Cláudio, ele era menino, eu disse: “Vai já à casa do… Vou já tocar para o seu tio (o meu irmão, Paulo Roquette-Pinto) e eu vou dizer a ele que ele tem que fazer qualquer coisa, que isso não pod eficar assim”. Telefonei para ele e, e o meu filho ia lá.
– Mas o que ocorreu? B. – Ocorreu que a Rádio… Veio uma Lei em que a Rádio passou para o Senado e a Câmara! No Diário, Diário Oficial com uma penada! Eu tive a impressão que o papai tinha morrido de novo! Aí eu digo: “Não é possível!”. Falei com meu irmão, meu irmão: “Ah, não se pode fazer nada…”, eu digo: “Tem que fazer!” Eu peguei a minha cunhada, que era Lia Roquette-Pinto, uma mulher muito inteligente. Agora eu quero fazer uma homenagem a ela: ela trabalhou até na Rádio, também, era uma mulher fora do comum. Ela era Xavier da Silveira, casada com meu irmão, Roquette-Pinto. Uma grande mulher! Ela disse “Vou com você, Tizinha”. Fomos nós duas para o Ministério. Eu fazia assim, dedo em riste, no Salgado Filho: “Isto não fica assim! Esta Rádio não lhe pertence! Não pertence ao Governo! Esta Rádio pertence ao povo, à nossa gente!”. Ele disse: “Pois não, minha senhora, pois não! Eu vou chamar o Consultor Jurídico.” E eu… Aí eu chorava, não é? Aí eu, eu dizia: “Fala, Lia”, porque ela era mais calma, e dizia: “Não pode (ela com o Estatuto da Rádio na mão), não pode, seu Ministro, porque isto aqui, está aqui dito, aqui, quando foi fundada a Rádio, foi fundada assim, para a Educação, assim, assim… Foi doada neste sentido, com esta carta.” Aí eu fiz um barulho, quando cheguei em casa Dinah Silveira de Queiroz, que já morreu, Rachel de Queiroz, o Drummond, um grupo grande (de brasileiros) me telefonava: “A família não vai fazer nada?” E eu digo: “Já fez! Já fez!”. O Dr. João de Oliveira Filho, que era um grande advogado, de graça, sem cobrar um tostão, mas meu irmão ainda teve que pagar as custas, para a Cintev. Para que o Ministério da Educação ficasse com uma fortuna que nós estávamos, enfim, papai doou, foi preciso que meu irmão gastasse um dinheiro. Eu agora nem poderia, porque ele tinha um cartório, e eu não tenho. Fazer um Mandato de Segurança, ganhamos a Primeira Instância, o Mandato de Segurança, e a Rádio continuou na Educação. Aí começaram a correr os trâmites legais. Aí eu ia, eu fui para a TV Rio, e o Gilson Amado, que era muito nosso amigo, como é, como é o nome dele? O Artur da Távola foi conosco várias vezes na Rádio, nós falávamos na televisão. E falávamos que a Rádio era do povo, que a Rádio é do povo. E tanto batemos, e tal, não se falou mais nisso. E a Rádio ficou que se chama ” Sub Júdice”, quer dizer, ela está “injulgada”. Ela não foi julgada, ainda. Ela não pode sair da Educação, por enquanto não pode. A menos que me mostrem onde foi julgada, quais foram os Ministros que julgaram, porque inclusive os Ministros todos, eu ia falar – o meu marido caçoava porque eu, em todo lugar que eu fosse, eu ia na sociedade, num “cocktail”, eu ia numa festa, ou eu ia num colégio, ou aonde eu fosse, era “…porque o Rádio…”, então ele dizia: “Onde a gente vê uma aglomeração assim, está a minha mulher falando do Rádio. Você vai ficar conhecida como ‘a louca do Rádio’!”.
– Estávamos falando após a doação, e a senhora estava falando que o seu marido estava lhe dizendo que a senhora ia se tornar “a louca do Rádio”, conhecida como “a louca do Rádio”. B. – É isso mesmo (risos). Ah, mas aí, felizmente, o processo todo, Dr. João de Oliveira Filho, que eu queria fazer um reconhecimento (acho que até já morreu), mas prontificou-se – era um senhor, um dos melhores advogados do Rio de Janeiro – eu telefonava: “Dr. João, preciso hoje de um programa”, ele ia conosco lá, não é, sem cobrar honorários. Todos! É um grupo de brasileiros. Eu acho que foi uma coisa impressionante! O que eu tenho de cartas, de documentos, de coisas, pedindo para a família – que a família já estava, eu acho que seria quase uma desonra, que a família não fizesse isso, não é? De maneira que a Rádio ficou “Sub Júdice”, continuou com as suas programações, e diga-se de passagem, muita gente acha que devia fazer assim, eu não devia fazer, ou popular, ou não popular, e eu digo sempre: os directores mudam, mas a Rádio, ficando na Educação, ela está na Educação! Ela sempre tem alguém, um director, que a ponha no caminho certo. É como filho, não é? As vezes cai um pouquinho para a direita ou para a esquerda, e você empurra um pouquinho e ela volta, não é? Então a Rádio tem é que continuar no Ministério da Educação. Para isso é que ela foi doada.
– A senhora poderia falar outra vez a respeito desse ideal, o que ele sonhava para essa Rádio, o que ele achava que ele podia conseguir para essa Rádio se fosse levado às últimas conseqüências o ideal dele? B. – Eu vou te explicar como. Uma das coisas que você pode entender muito bem é que ele – vou explicar: parece que não tem relação, mas tem, com a sua pergunta – quando o Anísio Teixeira era Secretário de Educação no Rio de Janeiro, o ideal do Roquette-Pinto era ter uma Rádio-Escola municipal. Portanto, vê que a Rádio Sociedade ele não queria uma escola. Se o ideal dele era formar uma Rádio-Escola, não era a Rádio Sociedade. Então, ele foi ao Anísio Teixeira e disse: “Anísio, eu quero fundar uma Rádio-Escola, está na hora de nós fazermos isso”. O Anísio Teixeira disse: “Eu não tenho dinheiro, Roquette.” Papai disse: “Quanto você tem?”, e ele disse: “Dez Contos de Réis”. Papai disse: “Me dá os dez Contos que eu lhe dou uma Rádio”. E com o material antigo da Rádio Sociedade, os funcionários que iam trabalhar de graça, que ajudaram a montar a Rádio, a PRD5, a Rádio-Escola municipal, que hoje tem o nome dele, e que não tem nada que ver com a nossa doação, com o Ministério da Educação – que muita gente confunde, são duas coisas diferentes. Então por aí você vê, a Rádio Sociedade, ele queria mais uma cultura do que escola. Ele queria uma coisa mais geral. É aquilo que eu estava lhe explicando sobre educação, instrução. Porque aqui confundem muito – tudo é cultura. Aqui no Brasil tudo é cultura, cultura. A parte educativa é muito séria! Você tem que ter uma parte de cultura e uma parte de educação. É verdade que, com a cultura, muitas vezes vem a educação, mas nem sempre, porque é como ele diz: “Educar é criar hábitos de significação social.” Então, ele não queria. O ideal dele da Rádio Sociedade eu acho que seria aquilo como ele fez: era para irradiar boa música, era para ensinar as pessoas, enfim, textos bonitos, um bom jornal, limpo, sem direita, sem esquerda, sem frente, sem atrás, é um jornal corrido. Porque o ideal dele é que aquele pessoal todo que está no Brasil afora, que ele dizia: “A Rádio é escola”, não é? Sem ser escola, quer dizer, é um instrumento de instrução sem ser escola. Justamente o contrário, sem ser escola. A Rádio-Escola era outra coisa. Então, eu acho que o ideal dele é que mantivessem essa parte. Meu Deus, o lema dele está dizendo: “Pela cultura dos que vivem em nossa terra, pelo progresso do Brasil!” Isso é que era o ideal dele.
– Queria que a senhora falasse agora da Rádio Secretária e da Rádio-Escola. B. – Secretária… Da Rádio-Escola, que tem o nome dele?
– Que virou a Rádio Roquette-Pinto. Como é que foi isso? B. – Bom, isso foi assim como eu lhe contei. O sonho dele era fundar uma Rádio-Escola, tanto que o Anísio Teixeira, quando fez o discurso de inauguração da Rádio PRD5, ele disse: “Esta Rádio, milagre de Roquette-Pinto” – porque foi um milagre, fazer uma Rádio funcionar com dez Contos de Réis, naquela época era milagre – mas era para tudo de currículo escolar. Até que é muito engraçado. Vou lhe contar um caso: a Rádio PRD5 – que tem a PRA2 e a PRD5. Não chamo Roquette-Pinto nem Sociedade, eu chamo PRA2 e PRD5, para mim é “gente”, nem é mais PRA2. É outro prefixo. Mas a PRD5, a Rádio-Escola, ela conseguiu o currículo escolar, então era Ilka Labarte, que era professora, era … Diniz, era um grupo. Eram quatro professores, seguiam exactamente o currículo escolar da Escola Primária. E, um dia, eu me lembro, já tinha sido inaugurada, o Anísio Teixeira já tinha morrido, e o papai ficava muito em casa ouvindo rádio, assim, e eu chego, todo dia ia lá vê-lo, já estava aposentado, e eu vejo ele meio triste, e eu disse: “O que aconteceu, papai?”, e ele disse: “Ah, minha filha…” (papai não era homem de falar de nossa terra, ao contrário, está sempre para cima, sempre, mas ele era lúcido, ele via as coisas como eram, ele não era “o Brasil tem mais estrelas”, não; como ele dizia: “minha geração foi contar as estrelas”, ele sempre dizia isso). Nesse dia encontrei ele muito triste, e eu disse: “Mas o que aconteceu?”, e ele disse: “Ah, minha filha, não sei o que fizeram aqui na nossa terra. Deram meu nome, puseram-me homenagem, e agora passaram para a Câmara dos Vereadores, então está lá, eu agora assisti, estão irradiando só nomes feios pela Rádio”, a Rádio PRD5. Aí aquilo me doeu, assim, até em um grupo também de brasileiros – Maciel Pinheiro, que foi professor, trabalhava comigo, e outro grupo de brasileiros – se movimentaram e a Rádio saiu do… quer dizer, essa coisa que a gente tem que estar sempre alerta, entende? Eu disse aos meus filhos “Olha, uma das heranças que eu vou deixar para vocês é a defesa dessa Rádio Ministério da Educação. Eu sei, já tenho uma certa idade, não tenho mais meu irmão, minha cunhada, meu marido (não pode mais), sou eu só! Vocês (eu estou dizendo para você, agora, eu estou dizendo para você), vocês é que têm que defender essa Rádio, a Rádio é de vocês! Não posso, não se pode fazer mais nada. É procurar onde está esse Mandato de Segurança, ver onde é que está, quais são as pessoas que os tem que ajudar, contar o caso todo – isso eu estou pronta para falar!
– A senhora falou, ainda há pouco, que Roquette-Pinto não tinha temperamento político. Mas ele foi um dos fundadores… B. – Foi. Foi, eu vou explicar porque que eu digo isso: ele foi convidado pelo Partido Socialista, e ele aceitou. Bom, porque ele era um homem de esquerda, quer dizer, um homem de esquerda no sentido humano da coisa, que todos nós somos. Mas ele não tinha o senso, o sentido político, e eu vou te explicar porquê. Ele aceitou ser candidato. Mas o meu irmão até caçoava, meu irmão dizia assim: “Papai não é político, não é? Papai vem assim, com cinco cédulas na mão, e diz assim: ‘Olha, toma aqui; quantas você quer? Três, quatro?”. Papai não tinha dinheiro para ser político, papai não tinha espírito político, papai não sabia o que era a Política. Quer dizer, não sabia, papai sabia tudo no sentido, quem sou eu para dizer isso! Mas, quer dizer, era uma política diferente. Sabe o que ele me dizia? Ele me dizia assim: “Minha filha, o meu ideal de político seria este: eu estou deitado, na minha rede, estudando ou lendo; vem um grupo de brasileiros dizendo: ‘Dr. Roquette, o senhor foi escolhido para ser eleito Deputado’. Aí, eu ia ver se aceitava ou não”.O senhor acha que este homem era político na nossa terra? Sinceramente, não? Seria um grande político, entende? Ele é que sabia como era o político, como deveria ser a Política.
– Mas, segundo me consta, ele foi um dos fundadores do Partido Socialista. B. – O nome. Quer dizer, eu não digo só. Papai não era homem de dar só nome. Ele tinha afeto! Talvez ele acreditasse naquilo, entende? Mas o que eu digo… Eu lhe contei a história que eu acho que não era político, entendeu? No sentido da coisa em si. Ele tinha idéias políticas! Ele era um homem que não podia viver sem idéias políticas, sem pensar. Pois um homem que dá uma Rádio para um povo, para gente ter, quer um homem mais político que esse? Não pode ser! Ele era político, humanamente político! Mas não era (eu digo) uma outra espécie de político, entendeu? Eu não quero fazer ao meu pai um agravo, quando eu achava que meu pai… Não é que ele fosse perfeito, ninguém é perfeito, nem ele era perfeito, mas ele foi um grande brasileiro! E digo mais: talvez um dos maiores brasileiros, do ponto de vista de educador, porque ele sempre dizia isso: “Minha filha, eu não sou nada disso de grande que dizem. Eu sempre fui, e serei, um simples e modesto professor”. E ele parava e dizia assim: “Na nossa terra, é título de honra”. Quer dizer, ele é um homem que nasceu para isso. Então, ele não tinha essa faceta, digamos assim. Não vamos dizer que ele não fosse político; ele não tinha a faceta do político normal. O Jornal do Brasil, aqueles artigos que ele escrevia sobre o Jornal do Brasil, que houve uma ocasião. Essa coluna, que hoje é do Josué Montelo, ele herdou de papai. Quando papai morreu, ele estava justamente na máquina – não sei se o senhor sabe como ele morreu – na máquina, escrevendo esse artigo sobre educação, e a última frase que ele escreveu foi essa: “Ensinem os que sabem o que sabem aos que não sabem”. Aí ele caiu com o derrame, que me telefonou, ainda falou comigo no telefone, apesar de estar com o derrame. Mas era a coluna do Jornal do Brasil, que ele escrevia diariamente. Eu tenho a coleção toda aqui, isso eu posso lhe ver, depois. Eu tenho uns, depois eu lhe mostro o que eu tenho, o material.
– Já que a senhora falou da morte, continuando a falar, e o funeral de Roquette-Pinto? B. – Bom, ele foi enterrado em Petrópolis, porque… coitado do meu pai. Ele dizia sempre que queria ficar em Petrópolis, que a mãe dele está enterrada lá. E ele dizia: “Aliás, vocês não vão se preocupar, eu quero me enterrar em Petrópolis porque a Academia paga tudo, porque senão eu ficava aqui mesmo, vocês não pagavam”. Mal sabia ele que a Academia não paga fora do Rio! (risos) Mas ele morreu de repente, escrevendo essa frase sobre Educação, ficou na Academia de Letras, ficou desde as 11 h da manhã até as 11 h da manhã do outro dia, e tenho os discursos todos que fizeram, que agora é que eu posso ler – até então eu não lia – do Carlinhos Chagas, do Pedro Gouveia, todos os académicos (quase), o Peregrino Júnior, muito emocionados, muito bonitos. Depois – isso é interessante contar nós saímos daqui e fomos para Petrópolis, foi aquela caravana, família, os académicos. Quando nós entramos no cemitério de Petrópolis, não sei se o senhor conhece, é um cemitério muito bonito e parece um jardim, tinha tanta gente, chovia e tinha tanta gente, tanta gente… Eu olhei assim – eu me lembro que eu estava com o Elmano Cardim, ele estava de braço assim, comigo – eu disse: “Elmano, por que tem tanta gente aí? O que é isso?” Ele disse: “É seu pai, minha filhinha (ele disse), é seu pai!”. Eu achei bonito porque o povo, em geral, se comove muito com esses populares. É verdade que ele, naquele momento, era o “Homem do Rádio”, todo mundo estava falando do “Homem do Rádio”. Mas ele teve a sua consagração como brasileiro!
– Eu gostaria que a senhora falasse agora sobre as preferências do Roquette-Pinto, as preferências artísticas e outras, principalmente na área musical. B. – Ah, bom! Na área musical ele gostava muito de ópera, gostava muito de concertos, tudo o que era muito bonito ele gostava muito. E ele foi – não sei se sabem – ele foi, como é que chama? Ele dirigiu durante uma certa época, o Theatro Municipal, aqui no Rio de Janeiro. Eu não me lembro mais quem era o Secretário de Educação. E era uma coisa com que ele se preocupava muito, com a juventude, com a mocidade. E ele quando dirigiu o Teatro Municipal, era uma Companhia, me lembro, Companhia Francesa. Como eu estudei na Europa muitos anos, na França, eu conhecia até os actores que vinham – Jean Lebert, Jean Archeant, quando era mocinha lá em Paris, aquela coisa toda, e eu ia às peças todas – e papai disse: “Não, umas três peças eu vou fazer de graça”, que ele tinha uma verdadeira… quase obstinação por educação do povo, sabe? Ele disse: “Eu vou fazer de graça para os estudantes brasileiros.” Muita gente dizia “Ah, mas eles não vão”, aquela história que “brasileiro não entende”, não é, que “brasileiro não gosta”, porque não dão! O povo não entende porque não dão! Porque é a tal história: você pode não entender francês, mas você vai a uma boa peça, bem representada, em que tem um livreto traduzido, você fica conhecendo Cornail, você fica conhecendo El Cid, você fica conhecendo pelo menos quem é o Shakespeare. Agora, você não dá. Você, você está vendo agora a quantidade de gente que vai para a Quinta da Boa Vista, a quantidade de gente que vai levar livro. Eu acho uma maravilha isso, aliás. Levam um livro e entram de graça no Theatro Municipal. Eu acho uma maravilha, porque para mim “livro é gente”. É, é uma coisa fantástica! Eu gosto tanto de livro, eu gosto de andar sempre com um livro na mão. Eu dizia a meu pai: “Eu tenho, eu tenho a deformação de professora sem ser”, (risos) se pode se chamar “deformação” ser professora. De maneira que ele botava de graça, ele tinha aquela coisa. Eu nunca vi meu pai dizer “Esse Brasil não vai pra frente”. Nunca vi meu pai dizer: “Qual, esse pessoal não vale nada!”. Nunca! Nunca! Quem é – nesse ponto eu acho, eu estou com o Paulo Carneiro –quem é bom brasileiro pega um livro do Roquette, mas não é assim – porque eu posso dizer, você pode dizer mas nós, desculpe, mas nós não temos capacidade de antropólogo, e ele estudou. Você sabe que a única classificação do Homem brasileiro que existe hoje é a do Roquette-Pinto, Chatodermos(…), e ele chegou à conclusão que o mestiço é óptimo, é formidável! Eduque esse Homem! Eduque, ensine a ele para ver onde ele vai, longe! Aliás, vou lhe contar, eu tenho um caso que se deu conosco, que eu me lembrei muito dele: a minha mãe foi casada duas vezes, e meu padrasto, que eu chamo de “segundo pai”, foi o Almirante Dalzo Martins, foi Ministro da Marinha; foi um homem maravilhoso, um outro pai – eu fui uma pessoa muito feliz, tive dois grandes pais – muito bom, mesmo! Uma pessoa humana, uma pessoa fantástica! E ele foi numa viagem aos Estados Unidos, e nós fomos nessa viagem e tinha, acompanhando, um chofer, um daqueles “mariners” americanos, bonito, forte, sadio. E nós íamos para um almoço, não sei onde, e iam os Ministros, aquela coisa toda, e o meu marido e eu, nós íamos atrás. De repente, entramos lá e o rapaz, o marinheiro que ia guiando, disse: “Ih, não sei, nos perdemos!”. Digo: “Mas como, perdemos? O senhor não sabe para onde nós íamos?” “Ah, não! A minha ordem é seguir o carro da frente!”. Nunca que o mulatinho brasileiro seguia o carro da frente sem saber para onde vai! Nunca! Me lembrei de meu pai. Nunca. Pode ser uma coisa fantástica, mas não vai “no escuro” (risos), ele não vai “no escuro”.
– Mas, Beatriz, ainda no capítulo das preferências, que tipo de música popular ele gostava? B. – Ah, ele gostava muito de, de música popular, ele gostava, naturalmente – eu acredito que a música moderna actual de Rock ele não gostasse – mas ele gostava muito de canção. Ele gostava muito desse gênero dessa época, não é, da Elisinha Coelho – gostava muito dos sambinhas do Noel Rosa, gostava muito, é uma pessoa muito… Sabe, de tudo o que era bonito ele gostava! Agora, bonito e bem feito.
– Mas ele não tem, assim como Juscelino tem, ou tinha, adoração pelo “Peixe Vivo”, ele não teria… B. – Ah, não, ele tinha por várias músicas! Você sabe que ele era poeta?
– Sei, sei. É importante para mim para que eu, eu insira no programa… B. – As músicas?
– Sim. B. – Mas você pode inserir, pode pôr canções, pode pôr um sambinha bonito. Pode pôr, misturado com Mozart, que ele adorava! Pode pôr até um Wagner, porque realmente a figura dele era tanto humana como musicalmente, era muito ampla. Ele tinha uma concepção de vida muito grande. Olha, é uma das pessoas… Ele nasceu realmente com o dom de explicar as coisas, nisso ele tinha razão de ser professor. Por exemplo, uma ocasião, tinha uma amiga nossa que tinha uma filhinha pequena, e nós íamos almoçar com papai. E ela perguntou para o pai, que estava ao nosso lado: “Papai, o que é sorte?”; o pai disse: “Ih, nós vamos visitar o Dr. Roquette, você vai perguntar a ele o que é sorte.” Aí nós chegamos, aquela coisa toda, e eu disse: “Pergunta!”, e ela perguntou o que era sorte. Ele disse: “Me dá uma moeda” naquele tempo tinha aquela moeda – “Cara ou Coroa, Cara ou Coroa? Você ganhou; então, sorte é a quem o azar protege.” Quer dizer, ele tinha o dom, então ele falava com as crianças. Por exemplo, ele morava na Rua Vila Rica, aqui perto do túnel, e ele tinha aquela “sensitiva”, não é, aquela plantinha. Os meninos iam lá, adoravam! Porque o papai pegava uma folha e contava uma história, sabe? Ele não contava assim uma. Aliás, eu peguei isso com ele, estou contando à minha neta agora a história dos castelos da França, do “Chambor” ela não sabe o que é “Chambor”, nem nada disso – mas ela sabe que o castelo tem um terraço, que o Rei ia caçar, porque eu acho que, é como ele dizia: “Toda dona-de-casa tem que ser uma professora na sua casa”. Tem que ensinar; você não pode chegar para uma pessoa e dizer, não é: “Faça! Não faça!”; tem que explicar por quê. Você fazendo assim, você é muito mais bem servido em tudo, na vida.
– Eu, na minha pesquisa, eu encontrei uma parceria curiosa do Roquette-Pinto, em que ele escreveu a música sobre um poema do Vicente de Carvalho. A música chama: “Folhas Soltas”. B. – Eu tenho aqui! Eu tenho esse poema, quer dizer, eu tenho a música escrita.
– Eu queria! B. – Eu vou procurar (risos). Eu tenho.
– Eu queria para tentar produzir. B. – É, eu vou ver onde é que eu tenho.
– Gravação não tem, não é? B. – Não, gravação não tem.
– Roquette-Pinto e Villa-Lobos: B. – Ah, Roquette-Pinto e Villa-Lobos, eles eram muito amigos! Quando o Villa-Lobos veio – porque o Villa-Lobos morou muitos anos em Paris. Eu até o conheci em Paris, ele morava num apartamento e nós, os brasileiros, íamos lá uma vez por semana, ele chamava “Club de Sardine”, o “Clube das Sardinhas”, porque a gente sentava no chão, aquela coisa. Depois, ele veio para o Rio, e ele estava com aquela idéia de fazer os orfeões, não é, de organizar o orfeão. Daí que ele começou. Que é uma coisa muito boa, é uma coisa que o Roquette sempre dizia, “O nosso povo tem que ser educado é pelo futebol, é pela música, é pelo orfeão, é a disciplina”. Tanto que existe a profissão de fé do orfeão, foi feita por papai: “Eu (se não me engano) assim prometo…” não sei; eu sei que acaba assim: “…usar a disciplina cantando.” Eu posso até lhe ver o juramento do orfeão, foi feito por papai, que o Villa-Lobos pediu. E o Villa era muito amigo dele. Quando o Humberto Mauro fez “Descobrimento do Brasil”, papai falou com Villa-Lobos para fazer a música, para escrever a música. E é muito engraçado, este caso que eu vou lhe contar, porque ele compunha lá na Praça da República, nós trabalhávamos em cima, no Cinema Educativo, Humberto Mauro, o Roquette, eu, todos nós, e embaixo tinha um estúdio grande. Então, papai cedeu e fazia, o Villa ficava compondo. E quando ele fazia uma coisa assim, mais bonita, ele subia: “Vem cá, Roquette, vem ver!” Papai descia, e os dois ficavam ouvindo aquela música do Villa, aquela coisa. Um dia, ele subiu e disse: “Ah, Roquette, vem ver que beleza! Vem, Tizinha, vamos, vamos!”; descemos. Descemos, uma beleza de música! Não sei qual foi o trecho, era “O Pássaro”! Não era o uirapuru, não, era um outro pássaro, não me lembro agora o nome. E ele botou a música, e “tam, tam”, fortíssima! Uma beleza de música! Quando acabou: “Então, Roquette, que tal?” Papai disse: “Uma beleza! Só tem uma coisa, sabe, Villa? É que esse pássaro, ele canta… fininho, baixinho. Mas não muda, não, que ninguém sabe.” (risos) Está lá, no “Descobrimento do Brasil”! Eles foram feitos para se entender, não é?
– Eu gostaria que a senhora explicasse de que maneira esses cantos indígenas, que o Villa-Lobos, que o Roquette-Pinto recolheu, naqueles cilindros, de que maneira eles foram aproveitados pelo Villa-Lobos. B. – Ah, bom, ele ia lá, passava os fonogramas, que era como se fosse um disco, trava a música em si, não é, e depois orquestrava. A música – até papai, esse “Nozanina” é conhecido na família, os netos todos dele cantam. Os bisnetos, agora: “Nozanina aurecuá couaá casaetê eteê nozanina aurecuá…”, quer dizer: “Vamos comer mingau, vamos todos comer mingau…”. Papai é que traduziu, e ele então fez vários. Fez o “Canto Pajé”, eu tenho os fonogramas que, aliás, o Villa-Lobos pôs na dedicatória “…essas músicas que são todas suas, Roquette, o dono dessas músicas…”, não é, que ele pôs.
– Ele tinha preferência por alguma obra específica do Villa-Lobos? B. – Não, eu acho que não. Bom, “As Bachianas” todo mundo adora. Acho que tem tanta coisa bonita do Villa-Lobos que é difícil a gente escolher uma, assim.
– A senhora possui algum documento sonoro dele? B. – Tenho. Tenho gravações pequenas de entrevistazinhas. Tem uma da minha cunhada, da Lia, que ela fez uma entrevista dele que ele fala muito bonitinho, eu fui convidada, também, mas eu não ia, não; era um grupo de amigos nossos que instituiu um “Mardi Musical” (ficou chamando “Mardi”, Terça-feira): uma vez por semana eles se reúnem, ouvem essas músicas, e tal. E a minha cunhada levou um dos directores do “Mardi Musical” para o papai falar sobre o “Mardi Musical”. Então ele falou, eu tenho aqui, tem umas duas ou três aqui que eu posso depois ver para lhe emprestar. E tinha uma voz linda! Uma dicção maravilhosa.
– Agora, Beatriz, me conta como eram aqueles pique-niques na Barra da Tijuca: B. – Bom aquilo era uma coisa deliciosa! Até vou contar – não sei se o Sérgio contou o caso do meu irmão, que encontrou um amigo na… Não contou não? Nós tínhamos assim: meu pai, todo domingo, vinha almoçar comigo. E eu vou lhe dizer, realmente, nós tínhamos um relacionamento muito grande, eu e ele, porque eu sempre caçoava com ele: todo homem tem que ter uma mulher na vida. O meu pai, a mãe tinha morrido; era separado da mulher; e ele não tinha encontrado companheira – ou se encontrou, não ficou. Então, era a filha! Então nós tínhamos um relacionamento, nos entendíamos muito bem! Por exemplo, até hoje fico pensando, ele ia fazer, por exemplo, uma palestra qualquer num Instituto Histórico Geográfico. Eu ia sempre com ele, ele não dizia: “Vem comigo”, não: “Tizinha, você quer me levar ao Instituto Histórico?” Eu estava sempre pronta, não é? Aí ele dizia: “Olha, minha filha, eu vou ler para você um trecho. Vê se está bom:…”. Quer dizer, é impressionante, ele lia para mim, e estava sempre bom, porque ele escrevia muito bem, o que ele dizia era muito simples, porque papai falava “simples”. O Cláudio tem isso, saiu ao avô, sabe? Ele escreve “fácil”, “simples”. Porque esse negócio rebuscado, não pode. E os pique-niques, voltando ao pique-nique, ele vinha todo domingo almoçar comigo, aqui. E, afinal, o meu filhinho, o Cláudio, tinha nascido, era pequenininho, eu já não podia mais estar fazendo almoço aqui, e ele comprou um terreno na Barra. Naquele tempo, era vazio, não tinha nada lá, para lá de São Conrado um pouco não tinha coisa alguma. E ele disse: “Ah, eu comprei um terreno, vamos fazer um pique-nique lá.” Eu digo: “Vamos!” Então era minha filha, meus sobrinhos, minha cunhada, meu irmão. O Sérgio foi parece que uma vez ou duas, não era muito, não. Mas o Mateus, aquele famoso Mateus era tudo, para nós. Meu irmão e nós íamos. Então, ele levava os sanduíches (ele fazia uns sanduíches que até hoje eu me lembro), porque papai era um grande cozinheiro, e fazia uma sopa de camarão, nunca mais tomei! Uma salada temperada por ele, ninguém tempera igual! Ninguém! Então, ele fazia os sanduíches, me lembro, de agrião (risos), foi a primeira vez que eu comi sanduíche de agrião. E ele levava aquela coisa toda e nós íamos, então. Ele mandou fazer uma (como é que chama, de palha), como se fosse um caramanchão, grande, redondo, de palha. E lá ele deu, a cada um de nós, ele deu um nome indígena. Eu era “Acoema” era o “nascer”, o “nascimento agora”. O Cláudio, meu filho, eu me lembro que era “Pindá” – o “anzol”. Cada um tinha um nome. Ele era “Uiraçu”, quer dizer, “o de penacho”, “o Chefe de penacho”. Era só isso. E ele tinha, mandou fazer até umas faixas, botava no chapéu, “Uiraçu”, aquela coisa toda. E nós íamos para lá. E o Humberto Mauro com a mulher, com a filharada toda, o Zequinha, e nós íamos para lá, ficávamos o dia inteiro! O que fazem hoje, aqui na praia, nós ficávamos lá. E papai. Ficávamos ali ouvindo rádio, conversando, aquela coisa toda; quando chegava quatro horas, assim, nós vínhamos embora. Um dia, o meu irmão encontra na Avenida um amigo lá, de papai, que não via há muito tempo, e diz: “Ô Paulo, vem cá: me contaram uma coisa, que o Roquette não está bom da cabeça, que ele vai lá para Barra, se veste de índio, canta e dança. ” (risos). Era um pique-nique, um pique-nique à toa, só que tinha nome de indígena, de índio.
– Beatriz Roquette-Pinto Bojunga, contando o famoso caso da “história da gravata”! B. – Bom, eu conheço duas. Uma, eu trabalhava com meu pai no Museu Nacional, e nós chegávamos de manhã cedo para o trabalho, e o Seu João, o porteiro, estava nesse dia discutindo com um rapazinho. O rapazinho devia ter seus dezessete, dezoito anos. E o papai chegou, e o Seu João com aquele respeito todo: “Professor!”, o papai disse: “O que é que há, Seu João?”, “Professor, o rapaz quer entrar, mas não pode! O regulamento, não pode entrar sem gravata!”. O papai disse: “O regulamento fala alguma coisa do Director do Museu entrar sem gravata?”, e o João disse: “Não, não fala.” Papai tirou a gravata dele: “Então ponha o senhor a gravata”, e o papai entrou sem gravata (risos). E a outra, que eu acho muito engraçada, ele foi para um Congresso de Raças em Gotemburgo, na Suécia, e levou casaca e, na hora de se vestir ele viu que não tinha levado a gravata branca, e chamou a mocinha, não é, a “femme de chambre” que estava ali, e perguntou se não podia comprar uma gravata. Ela disse: “Ah, não, tudo fechado, tudo fechado”; papai disse: “Meu Deus, como é que vai ser…”. Nisso, diz que a moça volta assim, ele olha e vê o aventalzinho dela branco, amarrado com um lacinho que era uma beleza (risos); ele pediu a ela para cortar. Só o papai, mesmo! E lá foi ele, com a casaca, com o lacinho da empregada do hotel! (risos) Mandou ela coser, foi direitinho.
– E a máquina de gelo? B. – Ah, bom, essas, essas experiênciazinhas pequenas, nós às vezes amargávamos um pouco com ele. Lá no nosso “sambaqui”, lá na Barra, nos famosos pique-niques, ele um dia inventou, fez lá uma maquinazinha de fazer gelo. Então (risos), não era complicado, não. Era redondinho, não é, uma coisa de metal e tinha, não sei o que que ele tinha posto, eu sei que tinha álcool. Então o vento vinha, aquilo girava, então, girava, fazia o vento, e fazia o gelo! Então, você esperava três horas! Na hora da gente voltar para casa: “Vê se não está gelado, Tizinha!”, ele ficava contente. “Não, está fresco, papai.”; “É, não dá certo, não. Esse negócio não dá certo! Vamos para outra.” Eu acho que ele se distraía, sabe, se divertia. Por exemplo, uma das coisas que ele mais… foi o gasogênio, no tempo da Guerra – eu andei muito de gasogênio! “Mateus, baixa o chada!”, o Mateus descia – porque o gasogênio tinha aquela parte da frente, não é, o carvão e tal. E então ninguém tinha automóvel, eu era uma grã-fina, eu ia para o Itamaraty, para os jantares e tudo, e ia no carro de papai com gasogênio, um carrinho velho, gasogênio. E ele adorava. Nós íamos para Petrópolis, tudo de gasogênio! Ele gostava. Por exemplo, eu não sei se sabem, a mesa em que ele transmitia as primeiras imagens de televisão do Brasil, foi ele que transmitiu da Rua da Carioca para Santa Teresa! Quem recebia era o Flávio, marido da Elisinha. E ficava, eu ou o Mateus: “a,a,a,a,a,e,e…” – era ABI, não é – “b,b,b,b,i…”; aí eu cansava: “Vem, Mateus!”, Mateus vinha pra “a,a,a…”, ficava aquilo a tarde toda. E, um dia eu cheguei lá na Rua da Carioca, e ele disse: “Minha filha, eu preciso de você hoje; você vai com o Mateus até a Polícia porque você vai pedir na Polícia uma licença para eu continuar com as minhas experiências de televisão. Porque, senão, é proibido.” (risos) Então, em qualquer lugar do mundo, tinha dinheiro para continuar as experiências. Aqui, eu fui com o Mateus para a Polícia, na Praça Tiradentes. Então mandou botar no quadro, botar num quadro em cima da mesa dele, estava lá: “Licença para o Professor Roquette-Pinto fazer experiências de televisão”, e a mesa está hoje no Museu Histórico; quem levou foi o Gustavo Barroso, que é avô da minha actual nora, mulher do Cláudio.
– Tem mais algum “causo” assim que esclareça sobre a figura humana dele, que a senhora se lembre? B. – Não, tem umas coisas mais particulares, mais íntimas assim. Ele era uma pessoa muito humana.
– Sobre o patriotismo do Roquette-Pinto: B. – Ah, o patriotismo dele era uma coisa muito profunda! Era uma coisa muito séria! Porque o patriotismo dele vinha com a obrigação de fazer qualquer coisa para o seu país. Era isso que precisavam incutir na cabeça das crianças nas escolas. O que é… isso não é dele, não, isso é meu, sabe? Eu não sei se é certo ou se é errado, mas eu herdei dele isso: a idéia que ele me deixou do patriotismo é que “o bom patriota é aquele que faz qualquer coisa para a sua pátria. E não diz que não vai para frente, não bota para baixo, não! Agora, não quer dizer também que é o país melhor do mundo, não! Tem que ver, tem que ajudar, tem que fazer! Como você tem sua casa, eu tenho a minha, não é a melhor do mundo. A gente vive arrumando, não é, se vive ajeitando uma coisa. Você herda isso do seu avô, herda aquilo do outro avô, herda aquilo da sua bisavó, se você não tomar cuidado, você fica sem nada! Então, o patriotismo dele para mim era isso: era fazer qualquer coisa para o seu povo e sua gente. E no dia do enterro do Getúlio Vargas, eu morava onde meu filho mora hoje, porque aqui eu fiquei quando a minha mãe morreu, e meu filho ficou onde eu morava, aqui na praia, também, ali ao lado do Hotel Regente. Aquele é que é o meu, comprado com o meu dinheiro; esse aqui é da minha mãe. Era do meu avô – esse avô que eu falei, positivista, morava aqui. Quando o Getúlio Vargas foi enterrado, no dia do enterro dele, eu estava em casa e ele passou – papai morava na Avenida Beira-Mar, aqui perto do Aeroporto. Eu toquei para o papai, e eu digo: “Papai, mas como é que está aí o enterro, e tal, como é que é?” Ele só disse isso: “Ah, minha filha! A ignorância do nosso povo é de enternecer…” Vê que coisa bonita, parece que fala de filho. Você fala de filho: “A ignorância de meu filho é de enternecer”; você não diz: “Ah, que ignorância! Que gente que não sabe nada, gente que não quer aprender”. Não! Disse: “A ignorância do nosso povo, minha filha, é de enternecer”. Eu nunca mais esqueci isso. Porque ele via aquela coisa toda, não é, aquilo tudo. Quando o Getúlio, você vê, aquela fase do Getúlio começou, ele foi ao Palácio. Ele foi, e ele pediu ao Getúlio demissão do cargo – ele era Director do Museu Nacional – e que ele não podia continuar; era contra as idéias dele, não podia continuar. Aí o Getúlio teve uma atitude muito bonita, disse para ele: “Nós, Professor Roquette-Pinto, nós não fizemos a Revolução para afastar homens como o senhor; eu peço que o senhor continue no cargo.” E nunca! Mas nunca, durante todo esse tempo, o Professor Roquette-Pinto – eu sou testemunha que trabalhava com ele na mesa assim, ao lado dele – nunca ele pediu nada que ele imediatamente não desse! Foi o Presidente da República que foi quatro ou cinco vezes lá. Eu tenho uma fotografia – noutro dia, uma amiga nossa que trabalha ainda lá, está fazendo uma exposição em São Paulo, disse: “Sabe qual é a fotografia que eu pus lá na página, na frente? É aquela em que a senhora está apertando a mão do Getúlio, e o Dr. Roquette do lado!” (risos) Eu digo: “Você ainda tem aquele retrato?” Ele impunha pelo respeito. Por isso é que eu digo, sabe, aliás eu dizia: educar é dar o exemplo. É dar o exemplo. Se você disser ao seu filho: “Não coma com a mão!”, se você comer, ele vai comer. Não adianta. Agora, se você não disser nada, e você começar a olhar de um certo jeito e comer, ele vai comer como você está comendo. Não digo que seja sempre, mas a maior parte é assim. É a força, é a força do exemplo. É a força… do respeito!
– Beatriz, ainda há pouco a senhora falou que chorava duplamente seu pai. Eu queria que (não estávamos gravando) “…eu sempre digo que choro duplamente o papai…” Queira me repetir essa fala, por favor? B. – Qual é a fala? Eu não…
– Fala que chorava duplamente seu pai. B. – Ah, choro, duplamente! Sempre que eu penso nele, sempre que eu penso no Roquette-Pinto, eu choro duplamente! Eu choro meu pai, o companheiro, trabalhei com ele, a vida inteira ao lado e choro muito a falta do brasileiro, muito! Porque eu acho que precisava ter muitos Roquettes agora, no Brasil. Sempre! Com aquele espírito que ele tinha, aquele amor pela gente dele, mas é um amor consciente, amor de pai para filho, que vê que o filho tem seus defeitos e que tem que educar! E não é aquele pai que diz: “Meu filho é o melhor do mundo, meu filho é inteligente.”, ou encher o filho. Não, nada disso, não! É trabalhar para poder educar o seu filho bem! E dar o exemplo, é o amor! Esse amor que ele tinha, é uma coisa impressionante! O amor que ele tinha por essa gente e, engraçado: ele não era povo. Eu gosto de dizer isso, eu gosto muito de dizer isso. Porque ele nasceu – eu vou dizer, parece uma coisa – mas ele nasceu numa certa aristocracia. O meu pai nasceu, ele era aquela coisa de fazenda, neto de fazendeiro, tinha meios. Depois minha avó perdeu, vendia doces para fora, ficou pobre. Mas, quer dizer, do ponto de vista de educação. Então, ele não era povo, mas ele sentia mais o povo do que muita gente que mora na favela, que é povo! Ele sentia o povo dele! E eu acho isso algo muito bonito. E muito raro! Era isso que eu queria ser…
– Tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de falar? B. – Não, nada. Foi uma tarde muito bonita…
Ouça a voz de BEATRIZ ROQUETTE-PINTO FALANDO DE SEU PAI
25-1-1911 – Rio de Janeiro (RJ) (Brasil) † 27-5-1999 – Rio de Janeiro (RJ) (Brasil) (idade: 88 anos)
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